Só, caminho pelas ruas de Toronto. Sinto a dor da cidade e na cidade, a dor do mundo. Vinte e três anos em terra estrangeira, muitos mais de vida, e nunca a senti assim tão íntima, a cidade grande e espalhada onde vivo. Comecei a percorrê-la ainda no fim do inverno, trilhando as ruas geladas para matar a saudade do Brasil e do verão, onde havia estado recentemente. A pandemia chegou com a primavera, quando o sol era ainda uma promessa e o frio insistia em demorar-se. De um dia para outro, com a notícia do vírus, fechou-se a cidade que se abria para o sol. Fecharam as escolas, os locais de trabalho, proibiram-se as reuniões e aprendemos a temer uns aos outros, a virar o rosto quando nos cruzávamos na rua, a esperar o próximo elevador para evitar o vizinho.
Com o degelo das ravinas e as temperaturas acima de zero, intensifiquei minhas caminhadas. Por um tempo andei pelas trilhas do cemitério, bonito como um jardim gigante e povoado de animais selvagens, guaxinins, coiotes, esquilos, pássaros os mais diversos. Marchava ferozmente, aspirando o ar gelado e expirando neblinas. Então começaram a apertar o cerco na cidade. Fecharam os cafés, as bibliotecas, os banheiros, e também o cemitério, para evitar que as pessoas saíssem à rua. Em agonia, as pessoas continuaram saindo, mas agora se esgueiravam entre ruas apertadas, roçando umas nas outras ao passar, temendo a morte na respiração alheia. Busquei refúgio nas ravinas, que são vales verdes de floresta preservada no meio da cidade, e as ravinas em abril eram ainda marrons e nuas de folhas. Descobri um mundo inteiro, secreto, escondido e solitário de ravinas interligadas, florestas que enverdeceram ante meus olhos, riachos, córregos, trilhos de trem abandonados que atravessam a cidade, e o grande rio Don. No meio da pandemia encontrei Toronto e suas dores de cidade rica com tantos pobres sem teto. Meus passos me levam a cada dia a lugares novos e secretos, ricos, fabulosos, assustadores. Caminho só, não paro, não sorrio, não fujo. Vivo um caso de amor com esta cidade assustada pela peste, e sua solidão é minha, suas noites sem dormir são minhas, seus lamentos pelos mortos são meu lamento pelos mortos também do meu país, do outro lado do continente. O verão está a caminho, a cidade enverdeceu e nas ruas de Toronto eu caminho e olho de olhos bem abertos o mundo que se descortina dentro e fora.
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